domingo, fevereiro 22, 2009

Ofélia




"Efetivamente, o apelo dos elementos materiais é tão forte que pode servir-nos para determinar tipos de suicidas bem distintos. Parece que então a matéria ajuda a determinar o destino humano. Marie Bonaparte mostrou muito bem a dupla fatalidade do trágico ou, melhor dizendo, os vínculos estreitos que unem o trágico e o trágico literário: "Realmente o gênero da morte escolhido pelos homens, quer seja na realidade para eles mesmos pelo suicida, ou na ficção para seu herói, nunca é ditado pelo acaso, mas em cada caso, é determinado de modo estritamente psíquico." (op. cit., p. 584) . Surge aqui um paradoxo sobre o qual gostaríamos de nos explicar.
Sob certos aspectos, pode-se dizer que a determinação psicológica é mais forte na ficção do que na realidade, pois na realidade podem faltar os meios da fantasia. Na ficção, fim e meios estão à disposição do romancista. Eis porque os crimes e os suicídios são mais numerosos nos romances que na vida. O drama e sobretudo a execução do drama, o que se poderia chamar de discursividade literária do drama, marca, pois, profundamente o romancista. Quer queira quer não, o romancista revela o fundo de seu ser, ainda que se cubra literalmente de personagens. Em vão ele se servirá "de uma realidade" como de uma tela. É ele que projeta essa realidade, é ele sobretudo que a encadeia. No real, não se pode dizer tudo, a vida salta aos elos da corrente e oculta sua continuidade. No romance só existe o que se diz, o romance mostra a sua continuidade , exibe sua determinação. O romance só é vigoroso se a imaginação do autor for fortemente determinada, se ela encontrar fortes determinações na imaginação humana. Como as determinações se aceleram se multiplicam no drama, é pelo elemento dramático que o autor se revela mais profundamente.
O problema do suicídio na literatura é um problema decisivo para julgar os valores dramáticos. Apesar de todos os artifícios literários, o crime não expõe bem o seu íntimo. Com demasia evidência, ele depende das circunstâncias exteriores. Irrompe com um acontecimento que nem sempre se prende ao caráter do assassino. O suicídio, na literatura, prepara-se ao contrário como um longo destino íntimo. É literalmente, a morte mais preparada, mais planejada, mais total. O romancista quase que gostaria que o universo inteiro participasse do suicídio de seu herói. O suicídio literário é, pois, muito capaz de nos dar a imaginação da morte. Ele põe em ordem as imagens da morte.
No reino da imaginação, as quatro pátrias da morte tem seus fiéis, seus aspirantes. Ocupemo-nos tão somente do trágico pelas águas.
A água que é a pátria das ninfas vivas é também a pátria das ninfas mortas. É a verdadeira matéria da morte bem feminina. Desde a primeira cena entre Hamlet e Ofélia, Hamlet - seguindo nisso a regra da preparação literária para o suicídio - ,como se fosse um adivinho que pressagia o destino, sai de seu profundo devaneio murmurando: " Eis a bela Ofélia ! Ninfa, em tuas orações, lembra-te de todos os teus pecados." ( Hamlet. ato III , c. I)
Assim, Ofélia deve morrer pelos pecados de outrem, deve morrer no rio, suavemente, sem alarde.Sua curta vida já é a vida de uma morta. Essa pobre vida sem alegria será outra coisa senão uma vã espera, o pobre eco do monólogo de Hamlet?"*

Quando eu era mais nova, sabia de cor todas as falas de Ofélia. Adolescente, muito antes de ler Shakespeare na faculdade, muito antes de Prática de Interpretação I. Era somente uma identificação às cegas, antes de eu entrar num mundo de interrogações, eu costumava obedecer.

* BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. tradução de Antonio de Pádua Danesi, 2a. edição. São Paulo, 1989.
** Quadro de John Everett de Millais

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