Mutações faiscantes

Estivera sentada, isoladamente durante todo o recreio, lendo uma de suas autoras preferidas. Dava-se ao direito à preguiçosa languidez pouco tempo após uma prova de matemática, que teria sido dolorosa, se não houvesse resolvido abstrair e resignar-se ao que pouco sabia.
Ouviu o bater do sinal; o recreio havia acabado, mas deixou-se estar sentada durante mais alguns segundos. Levantou-se e espreguiçou-se, sentia-se bem, cheia d'algum brilho absorvido pelo sol e pela leitura que fazia ainda há pouco. Já não pensava no que faria mais tarde, à noite, nem em quem veria, com quem falaria...
Tranbordava, tão cheia de si mesma que se encontrava. Deixou que viessem-lhe outra vez as deliciosas contrações de outro espreguição satisfeita, esquecendo de tudo, problemas, amores e dores.
Nada daquilo importava-lhe mais, escolhera deixar de lado letras números "pis" "rôs" tabelas de senos e cossenos e carbonos quirais; gostava de fingir que estes não faziam parte de sua vida e não faziam mesmo. Seu mundo era feito da "ludicidade" e lirismo das artes, não havia em si espaço para os frios números exatos e absolutos. Sua complexidade nada tinha de exata; era toda incertezas e inconstâncias e não procediam os dogmas. Dentro de si não haviam verdades absolutas e sim verdades mutáveis que ainda dançavam e brincavam de roda, podendo serem substituídas a qualquer momento, por um amor, um argumento mais forte, até mesmo serem levadas embora por uma rajada de vento, serem destruídas por um sofrimento.
Naquele momento, nenhuma felicidade que estivesse sentindo parecia-lhe pesada demais, pelo contrário, apenas flutuava com a ausência do peso trazida por esta tal estranha felicidade. Andava vagarosa e distraídamente pela rua, sorrindo ocasionalmente.
Tinha encontrado, parecia-lhe, o seu ponto de equilíbrio.
[ continua ]