segunda-feira, janeiro 07, 2008

" Carta"

" Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios. Talhares os teus gestos como sonhos para que fossem apenas janelas abertas para paisagens novas de tua alma. De tal modo arquitectar o teu corpo em arremedos de sonho qu não fora possível ver-te sem pensar noutra coisa, que lembrasses tudo menos tu própria, que ver-te fosse ouvir música e atravessar, sonâmbulo, grandes paisagens de lagos mortos, vagas florestas silenciosas perdidas ao fundo doutras épocas, onde invisíveis pares diversos vivem sentimentos que não temos.
Eu não te quereria para nada senão para te não ter.
(...)
A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormecesse, criança doente para sonhar outra vez com outro céu."
Livro do desassossego - Bernardo Soares

- É que, eu não sei, eu continuo querendo não conhecê-la. Eu não quero que ela se torne uma pessoa física para mim, entende?
- Por que, ela não é uma pessoa física?
- Não, é! Ah, você entendeu! Eu não quero que ela seja real. Quero ela lá e eu aqui. Porque não há como ela ser o que ela já é para mim, de verdade, ou mais.
- Ué, quem é essa? De quem vocês estão falando?
- É a "namorada imaginária" da Mayra.
- É, mais ou menos isso.

E eu não quero-te em realidade de mundo e perto. Não são defeitos que me incomodam, ainda que eu não tenha enxergado da distância em que estou, quase nenhum. Eu te inventei já e não há como você tomar vida a partir deste retrato em preto e branco, sem falhas, iluminado e brilhante que tirei. A imagem muda mas a temática é sempre a mesma, você, sem cores, de longe, os sapatos, as palavras, a voz e a beleza-delírio de devaneio. E ainda insiste na beleza minha que você pensa que percebe sem nunca ter nem me visto. Mas você já olhou tanto para mim e até em mim e nem se lembra. A minha beleza é também invenção sua.
Agora pára, por favor?

Um comentário:

Bruna Maria disse...

"Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente o sonho de um sonhador."

"Tu", quem? Porque, se você inventa essa "namorada imaginária", talvez esteja lidando com duas entidades: a inventada, sonhada; e a real (a que dá matéria-prima para que você suponha a imaginária).

Então, qual delas deve compreender o dever de ser o sonho do sonhador? Eu acharia que é a sua invenção que tem esse dever. Afinal, é ela que representa o sonho, a tua construção, é o duplo que escapa a sua existência factual. E, caso ela venha a desobedecer esse dever, onde paramos? Quem sabe, na realidade de mundo, como você cita, e se for assim, perdemos o sonho, o que para mim, é perder muito.
Mas penso... se é preciso a entidade inventada ter consciência do seu dever de ser coerente com sua natureza de devaneios (se assim posso dizer), acaba parecendo que, mesmo quando inventamos alguém e cremos que este está afastado da sua real existência, esse alguém inventado possui uma autonomia própria que nos escapa. Quero dizer, parece que há uma vida mesmo naquilo que criamos, naquilo que habita o nosso devaneio.
Não sei, é uma visão que tive e que me incomoda um pouco. Porque deixa a impressão de que nem mesmo o que alimentamos no nosso campo de sonho é possível de ser mantido regularmente por nós a ponto de não nos surpreender. Não seria como que linear e sem uma certa dose de vida que não nos pertence.
Se isso tiver algum sentido, mesmo que mínimo (rs), fico com outra impressão estranha: então, nada é capaz de nos pertencer por completo, e tudo é uma possibilidade de gerar surpresa (positivas ou negativas em relação a nossa expectativa - no caso do post, a expectativa de de "tu" ser meramente o sonho de um sonhador).

Mas tem outra possibilidade para o "tu", que é o ser a "pessoa real", que promove a figura imaginada. Quanto a esse possibilidade, não sei. Não sei dizer, nem viajar, a respeito, rs.

Beijo.