Todo mundo ninguém

Ninguém: Que andas tu aí buscando?

Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é porfiar.

Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?

Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.

Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência.

(...)
Ninguém: Buscas mais, amigo meu?

Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.

Ninguém: A vida não sei que é,
a morte conheço eu.

Belzebu: Escreve lá outra sorte.

Dinato: Que sorte?

Belzebu: Muito garrida:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.

(...)
Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu comigo.

Ninguém: Eu sempre verdade digo
sem nunca me desviar.

Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.

Dinato: Quê?

Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.

Ninguém: Que mais buscas?

Todo o Mundo: Lisonjear.

Ninguém: Eu sou todo desengano.

Belzebu: Escreve, ande lá, mano.

Dinato: Que me mandas assentar?

Belzebu: Põe aí mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.

O Auto da Lusitânia - Gil Vicente

Eu... eu odeio ser um eu que vive e é feito de um você todo que não existe. Fico de tempos em tempos me pondo em experiências para provar que vivo, o que não prova que sou. Sou o quê?
O que odeio realmente é o fato de ser um todo mundo que me afeta enquanto quem me consola é um ninguém.
É o que que todo mundo tem que dá direito de voz? E o que me faz história escrita pelas mãos de terceiros, me faz estranhar esta no espelhinho na frente do rosto, me faz repugnar este eu ninguém? É o que que me faz me procurar em caixas de tinta, cortes de cabelos, calças compridas, achando que a minha vida e pessoa são vendidas em embalagem.
Todo mundo acha que tem marca enquanto eu segue sem etiqueta.