Naquele dia, chegara no hall de sua universidade metida num vestido branco. O vestido não era como dos seus, tecido mole e jogado de quem ainda não tomou consciência do crescer-se. Não. Naquele dia, ela vestia um vestido branco, quase transparente com barra rendada de flores e decote generoso. Todas as vezes em que se metia dentro de um decote, sentia-se constrangida por achar que ali faltava algo e sobrava pano como se, ao optar por aquela vestimenta estivesse sendo quase revolucionária, precoce: não era para ela, ainda, faltavam-lhe formas de fêmea que chama o macho. Sentia-se uma criança que calça os saltos da mãe pela primeira vez.
Assim que desceu do elevador, olhou em volta. Seu olhar tentou captar alguém conhecido. Ninguém. Sentou-se sozinha em um dos muitos bancos e pôs –se a ler sempre bem atenta a quem ia e vinha. Procurava um elogio às suas formas de mulher não completadas, ao esmero com o qual tinha se produzido, a delicadeza de gesto que era ter uma rajada suave de vento a balançar-lhe as rendas.
E tudo isso somente para uma apresentação. Nunca fora bem em discursos públicos. Achava então que se colocasse o foco em algo externo em si, desviaria a atenção da sua falta de traquejo. Trabalho de responsabilidade expor vida e obra de um poeta e um ficcionista de sua habilitação. Não dividiam a língua nem a época mas os sentimentos e alma. Estaria ali, de branco com a alma toda posta às nuas por aqueles dois.
Ah, literatura...Que doce e angustiante prazer!
Dessa vez, não tremera e nem ruborizara-se inteira. Mesmo estando exposta desde o primeiro de seus cachos até a ponta de suas sapatilhas, escondera-se atrás da pureza branca de mulher e voltara subitamente a ser virgem. Estava nua e em doce espera. Um contentamento surdo lhe vinha junto com um medo caleidoscópico.
Ao término, caminhou-se decidida e resoluta como quem fora feita mulher. Seu andar era mais firme e poderoso, olhava a todos nos olhos e sem piedade. Surpreendera-se ao ver pela janela o reflexo de curvas cheias nas ancas e um desenho de desponte no decote, aparecia aquele sinal no seio esquerdo a indicar: ali residia um coração pulsante.
Ao entrar na sala da última aula, um susto. Enquanto tentava desfazer-se de inseguranças feminis ouviu aquela palavra que, em grego antigo significava decidir-se. E só então dera-se conta que não decidira-se por nada, que sua vida era um eterno ir e vir de momentos perigosos e à beira do abismo, bifurcações as quais ela nunca atravessara. Por isso a constância, por isto a insistência por uma escolha que fosse.
E seja qual fosse ela, teria que esperar. Naquele momento, abria seu caderno, dispunha as canetas que iria utilizar todas a sua frente e preparava-se para voar.
Já passada a insegurança e o breve momento fatal, conversava animadamente sobre casos, sobre a vida, sobre coisas de mulher. Ria deliciada. Sorrateiramente, sentiu atrás de si uma mão grande e desconhecida esgueirar-se pela alça de seu vestido para melhor dispô-la. Abriu mais os olhos e a boca enquanto congelara no meio de uma sílaba. A amiga sentiu a quebra e olhou – a como quem pede piedade. Ela continuava em choque incapaz de virar-se, inclusive. A outra, desconhecida postava-se como quem havia feito um bem de melhor arrumar aquela menina tão faceira e expansiva mais tão expansiva que não cuidava bem de si, esperava, satisfeita, um agradecimento que nunca veio.
Mas ela não sabe que nos outros não se toca sem permissão?
Apesar de não parecer, mulher ela já era. Apanhava e tudo, por prazer, que fique claro. Mas nem mesmo quando precisava abrir-se como espécie reprodutora que era, sentia-se violada como com uma mão em sua alça de vestido. Do seu vestido de santa que a tornara completa.
Não sabe ela que os impulsos, nós guardamos para si. Por que não me avisou? Por que não perguntou se podia? Por que colocar a mão em mim?
O resto da aula, passou numa inquietude de quem tem bichos na cadeira. Voltara ao nada novamente. Não olharia para trás, por vergonha, por pudor de ter sido descoberta, enfim. A mão alheia lhe provocava uma repugnância ardente. Tremia-se toda tomada por convulsões de ódio e consciência mais profunda de ser violentíssima. O segredo de sua preparação, desmascarado. Não fora feita para ser mulher o suficiente, ficava claro e tão claro que aquele vestido não era seu e que não estava ela acostumada aos luxos de mulher refinada.
Ao final da aula, de um salto levantou para contemplar aquela que a havia tirado de si: ela era feia e vulgar.Sua roupa nem de longe lembrava a sua, tão alva a esmerada. De repente, tudo lhe fez sentido: fora tocada como santa. Com admiração de quem veste um manto de Nossa Senhora.
Eu te absolvo, filha, por todos os teus pecados e principalmente por chegar perto de mim.
p.s. pra primeira coisa escrita e concluída, até que não está mal, não é?