" Estava solta das coisas, de suas próprias coisas, por ela mesma criadas e vivas. Largassem-na no deserto, na solidão das geleiras, em qualquer ponto da terra e conservaria as mesmas mãos brancas e caídas, o mesmo desligamento quase sereno. Tomar uma trouxa de roupa e ir embora devagar. Não fugir, mas ir.Isso, tão doce: não fugir, mas ir..." [Perto do coração selvagem - Clarice Lispector]
Desprendida, eu nunca fui, em nenhum sentido. Pelo contrário, eu sempre fui muito egoísta, muito materialista, muito dona das coisas, eu as possuindo ou não. Eu nunca soube o que possuir, nunca soube o que era meu nem nunca soube lidar com o que o era, de fato.
Eu sempre tive preferidos, sempre coloquei coisa na frente de outras, pessoas acima de outras, hierarquia sempre pareceu ser uma ordem muito lógica. Há graus de importância, de beleza, de prazer, de sentimentos. As minhas preferências, entretanto, nunca foram muito populares, muito normais. E eu sempre fiquei muito feliz em preferir aquilo que a maioria das pessoas rejeita. De alguma forma, isso tornava aquilo tudo muito mais meu, era a legitimação.
Hoje, eu sentei no chão, com todas as minhas roupas espalhadas na minha frente. Fiz a limpa num armário caótico no qual eu, quando entrava, demorava no mínimo dez minutos para achar o que eu queria. Fiz a limpa, separei tudo o que eu nunca usava, tudo o que não cai bem em mim (o que realmente não cai bem), todos os impulsos estúpidos e até alguns presentes com certo valor sentimental. Sem nenhum peso na consciência. Claro que, de algumas coisas, eu não consegui me desfazer, mas elas foram poucas.
Agora, um enorme saco de roupas descansa num canto da parede. Vou dá-lo pra uma pessoa que eu sei que precisa e que provavelmente irá usar essas coisas todas muito mais do que eu usei durante todo o tempo em que estive com elas.
Há até pouquissimo tempo atrás, não sei quando, pode ser que seja até o começo dessa semana, eu ficava louca com a possibilidade de ter que dar alguma coisa. Reclamava meses a fio sempre que a minha mãe dava alguma coisa minha, principalmente, porque ela não me perguntava. Mas agora que partiu de mim, eu não sinto mais como se faltasse um pedaço do que sou. Tudo que há naquele saco, é o que não sou mais. Talvez seja o que eu nunca fui. Não que meu armário agora me dite, ou seja mais eu. Eu ainda não o sei, como é que minhas roupas dirão isso por mim? Mas isso é novo. Abrir mão de uma coisa, e não me agarrar a ela como se ela fosse parte intrinseca minha, tanto quanto minha pele, é completamente novo.
É mais do que liberdade, é quase que o começo de uma auto suficiência.
Minha mãe costuma dizer que o quarto dela é o cômodo mais bagunçado da casa porque a vida dela anda uma bagunça e ela, sendo artista, deixa transparecer sempre, de alguma forma, o que ela é, já que ela não produz nada, faz tempo. Nem eu. E a bagunça estava toda aqui.
O fato dela ter acabado, significa muita coisa. Mas poderia indicar um novo eixo, um deixar para trás um passado que foi abandonado num baú guardado a sete chaves num lugar escondido que não sei.
Um comentário:
sinto que nunca estivemos tão próximas como agora: como se cada palavra sua, podesse ter sido digitada pelos meus próprios dedos.
:)
Postar um comentário