quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Cicatriz

" Quero ser a cicatriz risonha e corrosiva,
Marcada a frio,
A ferro e fogo
Em carne viva..."
[ Tatuagem - Chico Buarque ]

Nunca quis, nem nunca gostou explicar nenhuma de suas marcas, feridas, cicatrizes. Não gostava que soubessem que eram importantes, tão importantes quanto as cartas que escrevem a ela, e que ela guarda numa pasta. Pois onde é que já viu, menina gostar de andar por aí, marcada, lanhada...
Achava que nunca ninguém entenderia.As marcas pra ela não eram apenas resquícios, coisas que sobraram de dor, de imprudência, de acidentes. Não, eram memórias, as memórias de dor e não dor (prazer), de descuido que tinha em si, para si. Guardava a todas com cuidado, como se o seu próprio corpo fosse o diário e as marcas, as palavras, escritas por ela, pelos outros, pelo acaso...
E já eram tantas...as que menos gostava, mas que ao mesmo tempo as que mais a fascinavam eram os riscos verticais que ostentava no pulso e escondia com pulseiras escuras e barulhentas. Elas simbolizavam a dor extrema que alguém lhe proporcionou em um fim de semana em outubro e novamente em dezembro, a coragem de pela primeira vez machucar-se consciente do que queria que não lhe acontecesse. Machucara-se para poder sangrar, apenas isso. Sangrava-lhe já o interior, o que queria era transferência de dor. O sangue de dentro pra fora, a dor de dentro pra fora. Algumas pessoas gostam do sabor do sangue, outras do cheiro, seu fetiche era a visão, a simples visão do sangue lhe aplacou as lágrimas e a fez dormir, tranquila.
Tinha os pequenos pontos roxos no joelho. Suspeitava que estes também seriam para a vida toda. E até o fim da vida, teria mais, muitos a mais. Resultavam de seu péssimo senso de equilíbrio, um problema que devia ser tratado, segundo sua mãe. E não arranjava-lhes sempre em estado etílico. Pelo contrário, de dia, calçando chinelos, estando completamente sóbria, caía. Caía de maduro, so nada, sem motivo algum. O que sem dúvida a fazia parecer pateticamente mais nova do que realmente era, tendo em vista o gosto pelas saias pregueadas, exibia sempre machucados e hematomas nos joelhos.
Coexistiam em si junto com as marcas com data de validade, quando vencem, desaparecem.Como os arranões dos gatos que possui, e os hematomas provenientes daquelas noites, no apartamento do nono andar, num prédio enorme, numa cama que não é sua. Aqueles hematomas enormes que começam no pescoço, descem pelos ombros, costas e barriga. Alguns são pretos de tão escuros, tamanha era a vontade, e eram, por vezes adornados com marcas de dentes.E os dedos em apertão também lhe deixavam hematomas,nos braços...O vermelho de dedos emplastados na cara e toda aquela violência que ela precisava e da qual se alimentava. Para poder ela mesma provar pra si e para os outros que não era nenhuma bonequinha e que força não era só apreciada, como necessária. E não, ela não iria quebrar.
Por último vinham as marcas feitas em tinta preta, e os buracos furados pro cateteres para que ostentasse jóias de metal.Eram mais uma pura expressão de masoquismo. Um condicionamento a um tipo de padrão de beleza um pouco distinto dos demais. Era a dor da rebeldia, de tentar saber quem era, quem é.
Guardava a todas com carinho, com orgulho, como se fossem troféis.Que não mostrassem sabedoria, mas vivência.
Feridas queridas...

Um comentário:

Mariana Casals disse...

que máximo este texto!!!

muito, muiiiiito bom!